PEDAÇOS DA HISTÓRIA
3 mudas de uniforme cáqui e a nova identidade costurada no bolso direito da camisa: 61727-054. É o enxoval do maior investidor golpista do mundo - o anterior foi leiloado
Não se sabe se o dono das mais de mil peças leiloadas na manhã do sábado, 13 de novembro passado, em Nova York, assistiu ao noticiário de televisão referente ao evento. No leilão anterior, que fez passar pelo martelo a sua coleção de mais de quarenta relógios Rolex, Piaget e correlatos, ele ficou um tanto aborrecido ao ser informado do valor de arremate de uma das peças mais valiosas do lote: 900 dólares. “Me garantiram que valia perto de 200 mil”, queixou-se. Para Bernard Madoff, que há dois anos sobrevive com apenas um Timex Ironman comprado por 41,65 dólares no almoxarifado da prisão, tempo e dinheiro deixaram de ser sinônimos. Como detento número 61727-054 do complexo penitenciário federal de Butner, na Carolina do Norte, o autor da maior fraude financeira da história cumpre prisão perpétua de 150 anos.
Reduzida por bom comportamento, a condenação expira na manhã de 14 de novembro de 2139. Ou seja, dentro de 129 anos. Sem qualquer chance de Madoff não mofar na prisão. (Já no Brasil, onde o cumprimento máximo de pena é de 30 anos, um condenado a 278 anos de detenção, como o médico Roger Abdelmassih, recorre em liberdade).
Não se sabe se ao leilão do mês passado compareceu alguma vítima do investidor golpista. Elas são mais de 3 mil espalhadas mundo afora. Incluem desde amigos crédulos a investidores profissionais gananciosos e entidades humanitárias como a Fundação Elie Wiesel e a Fundação Steven Spielberg.
Filho de um bombeiro hidráulico judeu, Madoff jamais discriminou por raça, sexo ou religião. Aplicou o “esquema Ponzi” em quem acreditou nele, defraudando investidores de todos os credos, gêneros, pigmentos e latitudes numa gatunagem que pode chegar a 65 bilhões de dólares – dos quais apenas 1,5 bilhão foi recuperado até setembro passado.
Para ter acesso ao salão de 450 lugares do 2º andar do hotel Sheraton, na Sétima Avenida, onde se realizou o leilão, bastava deixar uma caução de 500 dólares e mostrar um documento de identidade. Houve quem visse ironia no fato de interessados em arrematar peças do escroque-mor serem obrigados a, como informava a oficial de justiça encarregada dos procedimentos, fazerem um depósito “de boa-fé” – um valor simbólico a representar o compromisso de homens de bem em não dar o calote mais tarde.
Tampouco passou despercebida a trilha musical que serviu de pano de fundo para a abertura dos trabalhos. Reverberava no salão a balada patriótica mais popular nos Estados Unidos de hoje: God Bless the USA, do cantor country Lee Greenwood, que supera em execuções o hino nacional americano e o clássico God Bless America, de Irving Berlin. Um sinal eloquente de celebração da justiça e do capitalismo: o escroque está morto, viva o sistema e passe-me lá aqueles tacos de golfe.
O desenrolar técnico do leilão ficou a cargo da firma texana Gaston & Sheehan, mas a supervisão e a renda ficaram sob a jurisdição do U.S. Marshals Service, o departamento do Ministério da Justiça responsável por executar decisões judiciais. No caso, o valor angariado de 2 milhões de dólares foi direto para os cofres do Fundo de Ativos Confiscados, uma conta gerida pelo ministério e instituída para compensar as vítimas da fraude.
Divididos em 489 lotes, todos os itens leiloados foram recolhidos em duas propriedades do casal Bernard e Ruth Madoff – o duplex de cobertura da rua 64 com Park Avenue, em Nova York, e a casa de praia de Montauk, em Long Island, Nova York, arrematada por 9,4 milhões de dólares. Mas são sempre as peças prosaicas do dia a dia dos poderosos, sejam eles escroques ou não, que despertam fascínio popular quase universal. Na arca de miudezas Madoff, uma tesourinha de cortar cutícula ou uma pantufa italiana de veludo negro com monograma bordado em fios de ouro são capazes de despertar grande excitação na plateia.
Um piano de cauda Steinway de 1917 saiu por 42 mil dólares, seis vezes mais do que a avaliação mínima. “Tenho outros pianos em minhas casas, mas o de Madoff representa um pedacinho de uma boa história. Servirá de ótimo tópico de conversa para nossos convidados”, garantiu o octogenário John Rodger, feliz da vida com o arremate.
O lote de número 380, que incluiu onze pares de cuecas de grife ainda embaladas, 109 pares de meia usados e 138 novinhos em folha, saiu por 650 dólares. As pantufas tamanho 39 foram arrematadas por um jovem que calça 45. Nenhum dos 250 pares de sapato que Madoff não chegou a calçar deixaram de encontrar um pé amigo.
Treze meses antes do leilão de novembro, Barbara Picower lia placidamente uma revista deitada numa espreguiçadeira de sua mansão em Palm Beach, na Flórida, enquanto o marido se afogava a poucos metros de distância. A viúva contou aos investigadores que só ao levantar os olhos da leitura se deu conta de que o esposo de 67 anos jazia inerte no fundo da piscina. Jeffry Picower estava sob investigação federal, suspeito de ser o maior beneficiário do crime financeiro do século. Teria lucrado 7,2 bilhões de dólares com o fundo Bernard L. Madoff Investment Securities LLC. Resta Madoff.
No complexo penitenciário de Butner, “Bernie” continua sendo o cara. Apesar de vestir o mesmo uniforme cáqui dos demais presos e circular de chinelo de couro barato, o ex-financista possui uma legião cativa de admiradores. Conta-se que, em leilão anterior de suas posses, os internos que acompanhavam o noticiário pela televisão se admiraram tanto com o vulto das trapaças, que se viraram para o bom velhinho com olhos de sincera admiração: “Puxa, Bernie, você roubou milhões!” Bernie ficou perplexo, indignado mesmo: “Milhões?! Não, bilhões!”
Presume-se que a salva de palmas tenha durado minutos.
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